Imaculada Conceição
Monte da Virgem - 2022
“Eis-me aqui”
Para celebrarmos a Imaculada Conceição, a liturgia da Igreja coloca-nos, todos os anos, os clássicos textos bíblicos da queda de Adão e Eva, da escolha que Cristo fez de nós mesmo antes da criação do mundo e a cena da Anunciação. Fixemo-nos na relação entre o primeiro e o Evangelho. Estruturam-se em duas grandes linhas de pensamento: no escondimento ou presença perante Deus e nas consequências daí derivadas.
É típico de Deus tomar a iniciativa de se dirigir à pessoa, a todas as pessoas. Também a nós. Assim procedeu para com Adão e Eva e para com Maria de Nazaré. Só que, quando parte ao encontro do casal iniciador da espécie humana, lá no jardim do Éden, não o encontra. Chamando por ele, ouve de Adão o desabafo surpreendente: “Tive medo e escondi-me”. Não assim, porém, com a Virgem Maria. Esta não hesita minimamente vir à luz, colocar-se diante do olhar de Deus e, consequentemente, responder ao seu mensageiro, com plena consciência livre: “Eis-me aqui”.
Destas atitudes contraditórias nascem duas vias contraditórias. A seguida por Adão e Eva poderia figurar-se num minúsculo ponto, circundado por uma linha grossa e intransponível. Nele, a vida fica fechada, individualista, sem sonho nem coragem, voltada para a terra que tem de cultivar, enfim, expressão de dor e de morte. Por sua vez, a da Bem-aventurada Virgem Maria é uma existência na direção de Deus, aberta aos irmãos a quem dá o seu próprio Filho, de participação consciente na história da salvação não obstante saber que a “espada de dor” também a haveria de ferir, voltada para o Reino e para a Jerusalém do Alto, enfim, dadora de vida e vida em qualidade e abundância.
Sabemos bem das consequências destas atitudes opostas. De Adão e Eva, recebemos a marca da fraqueza a que chamamos pecado original, a contínua tentação de nos escondermos de Deus, o privilegiar os nossos interesses egoístas em detrimento da boa harmonia social, a fragilidade das decisões a prazo, o sofrimento e a morte, tantas vezes gerados por nós próprios. A Mãe do Salvador, por sua vez, testemunha e garante a possibilidade de, em seu Filho Jesus Cristo, sermos redimidos do pecado e da morte pelo Batismo; a satisfação de nos colocarmos face a face perante Deus, já neste mundo; o rompimento do tal círculo em que se moveram os nossos primeiros pais, agora como grande projeção para o encontro com Deus e com os irmãos; a exemplaridade do que é um “sim” dito com alegria e para sempre, sem subtrações nem infidelidades; a luta contra todos os sofrimentos humanos e da própria natureza ou casa comum e a afirmação convicta de que, depois desta vida tocada pela dor e pela amargura, há uma outra vida tão feliz que até lhe chamamos bem-aventurança eterna.
Por isso, a conceção de Adão e Eva foi pura e bela, porque surgida diretamente das mãos do Criador, mas imediatamente manchada no lodo pela vontade libertária de quem ansiava ser “como Deus”. Mas a Conceição de Maria fui e permaneceu sempre Imaculada porque aceitou livremente a sua nobre e alta condição de se sentir continuamente “a serva do Senhor”.
Caros fiéis em Cristo, a nossa condição batismal exige-nos uma participação no serviço e no ministério que o Senhor exerceu e exerce em favor do seu povo. Exige-nos que nos coloquemos totalmente do lado d’Ele, a exemplo da Virgem Santa Maria para o infinito louvor que devemos ao Pai e para o serviço solidário e caritativo para com os irmãos. Se aceitamos o olhar cativante de Jesus e não nos escondemos d’Ele, tomamos consciência das implicações inerentes à nossa condição cristã e ousamos repetir as palavras da Mãe: “Eis-me aqui”. Sim, presentes e não ausentes no escondimento.
O caminho sinodal a que o Santo Padre nos convida passa por aqui. Como também o nosso Plano Pastoral para este ano, com o título: “Abraça o presente. Juntos por um caminho novo”. Abraçar este tempo cheio de sonhos e possibilidades é sentirmo-nos mandatados pelo Senhor para também nós nos inserirmos na sempre nova tarefa da evangelização, fermentadora de um mundo novo. E faze-lo em conjunto, pois o que é de todos diz respeito a todos. E a Igreja é de todos os crentes e praticantes.
Se estivesse entre nós, o meu antecessor, o senhor D. António Francisco, de grata memória, celebraria hoje cinquenta anos de um zeloso e santo serviço sacerdotal. Agora celebra-o na liturgia celeste. Ponhamos nele o nosso olhar e aprendamos dele a servir Deus e os irmãos com dedicação exclusiva, amabilidade cativante e entrega generosa.
Com a Virgem Santa Maria do Advento, a Imaculada Conceição deste Monte da Virgem, a quem vos confio, aprendamos a esta abertura contínua e total da existência a Deus e aos irmãos. Que Ela vos acompanhe sempre com a sua solicitude maternal.
Manuel Linda, Bispo do Porto 08 de dezembro de 2022