Homilia de Natal - 2024
“O Verbo fez-Se carne e habitou entre nós”
A Igreja, que não é nostálgica do passado, não celebra a história, mas sim a intervenção salvadora de Deus na história da humanidade. É verdade que não ignora a história e até a valoriza. Por exemplo, nas Missas da Vigília deste Natal e na da aurora, predominavam os acontecimentos históricos relacionados com o nascimento do Menino Jesus na nossa carne e condição. Mas, para esta Igreja, comprometida na atuação do Reino de Deus e sua ação transformante, o essencial é corresponder ao projeto divino e colocar-se como anunciadora do futuro da salvação. Por isso, nesta Missa do Dia, toda a atenção vai para o Verbo, Aquele por quem o Pai se dá a conhecer e revela o seu desígnio: fazer da humanidade uma só família sob a comum paternidade de Deus. É o que Jesus Cristo afiançaria mais tarde, numa expressão lapidar, mas com consequências transformantes de toda a humanidade e de toda a história: “O meu Pai [é também] o vosso Pai” (Jo 20, 17).
Ora, o evangelista São João, neste belo hino ao Verbo de Deus, que é o trecho do Evangelho agora escutado, não se detém nem nas curiosidades dos pormenores nem nas negatividades sociais. E tantas seriam naquele e no nosso tempo... Prefere apresentar a força mobilizadora da beleza e da salvação presente n’Aquele que é o garante do tempo novo, do homem novo e da nova humanidade. Por isso, as palavras que mais se fixam nos nossos ouvidos são vida, luz, filhos de Deus, glória, graça, verdade. São João sabe bem que somente o positivo e belo entusiasma. Pelo contrário, o mal só paralisa.
São João viu, de facto, que o nascimento de Jesus, o Verbo de Deus, é o princípio da regeneração do mundo. Este Menino não é dado somente a Maria e a José, mas é oferta a toda a humanidade. Uma oferta de efetivo cumprimento do plano de Deus para a humanidade, até porque um nascimento representa sempre o melhor e mais terno: a vida, o futuro, a esperança. E também a certeza da luz que desfaz todas as escuridões, a alegria que quebra o gelo das nossas relações, a ternura que cativa bem mais que os nossos desejos de guerra e de vingança. Por isso, caros cristãos, hoje, ao menos hoje, entoemos cânticos de júbilo, saltemos de alegria e deixemos de lado angústias e lágrimas.
Santo Efrém da Síria, um excelente literato e teólogo cristão do século IV, ousou cantar o acontecimento do Natal como quem canta e se vira para o próprio Jesus. Dirige-se aos dois e entoava num belo hino: “Aquele dia [do teu nascimento] é como tu, ó Jesus: é amigo dos homens. Regressa todos os anos ao longo dos tempos. Renova-se sempre com a criança que nasce. Sabe que a natureza não poderia viver sem ele. Como tu, vem em auxílio dos homens desanimados. O mundo inteiro, ó Senhor, tem sede do dia do teu nascimento. Que este dia seja também como tu: que traga a paz entre o céu e a terra”.
Eis, então, um “dia amigo dos homens”. Porque Deus deu-nos o seu Filho, o seu Verbo. E um presente destes jamais se poderá esquecer, a história não o pode ignorar. Como o Pai quer bem a esta humanidade, mesmo sendo pecadora, o dia de Natal é o dia da comemoração dos inícios: do início da história nova ou tempo de salvação, de regeneração do mundo. É o tempo da fraternidade, pois este Verbo, que “não nasceu da carne nem do sangue”, mas se apresenta ao mundo como o grande presente de Deus, “encarnou por nós homens e para nossa salvação”, como dizemos no Credo. Salvação que consiste em ter, efetivamente, a Deus por Pai e todos os outros homens e mulheres por irmãos e irmãs. Como Ele afirmaria na sua Bela Notícia: “Vós sois todos irmãos” (cf. Mt 26, 8). Sim, certamente. Porque reconhecemos e amamos o Pai comum. Porque não fechamos a hospedaria do nosso coração nem a Ele nem aos outros. Porque “veio ao que era seu” e nós os que somos seus, sabemos recebê-l’O.
Irmãos e irmãs, celebremos esta criança frágil e carente de quase tudo. Celebremo-l’O em todas as fragilidades sociais e mundiais que nos rodeiam. Mas celebremo-l’O com alegria, como certamente fizeram os Pastores de Belém, a primeira imagem da Igreja servidora e pobre que tem no seu centro o Jesus frágil e pobre e Maria e José, igualmente frágeis e pobres, e a quem as portas das hospedarias de Belém não se abriram. Celebremo-l’O com estes pastores, os últimos e mais desprezados da sociedade, mas que se revelaram os primeiros a constituir a família alargada de Jesus e a confirmar antecipadamente o seu dito: “Os últimos serão os primeiros e os primeiros serão os últimos” (Mt 20, 16). Celebremo-l’O com “um cântico novo. Chegue o seu louvor até aos confins da terra” (Is 42, 10). Façamos como preconiza São Gregório de Nazianzo, outro grande pensador cristão: “Cristo nasce: dai-lhe glória! Cristo desce dos céus; ide ao seu encontro! Cristo está na terra: homens, levantai-vos! Toda a terra cante ao Senhor!”.
Santas festas no Menino que nos foi dado, o eterno presente de Deus!
+ Manuel Linda 25 de dezembro de 2024