Homilia no Dia de São Bento
“Nada anteponham a Cristo”
Permite-nos Deus celebrar esta Solenidade/Festa de São Bento num tempo de possibilidades tais que nunca o mundo ousou, sequer, esperar tanto. Mas também numa época não isenta de medos e fantasmas, pois a humanidade experimenta uma forte fragmentação e dissolução pelas guerras, pelas migrações forçadas, pelo cinismo do uso da arma da fome, pela nova escalada de produção de armamento, pela possível desintegração sociopolítica fomentada por partidos extremistas, pela inteligência artificial colocada ao serviço das piores causas, pelo aumento do fosso entre ricos e pobres, pela insensibilidade social típica do individualismo, enfim, pela contínua agressão que fazemos ao planeta. Perante a possibilidade de bem e a teimosia da humanidade em dar as mãos ao mal, temos de fazer opções. No fundo temos de escolher exprimir limpidamente esse timbre sublime de se saber «imagem e semelhança de Deus» ou encantarmo-nos com o negativo de nos tornarmos «imagem e semelhança do homem». Neste caso, o pior do ser homem materialista, violento, perverso.
Ora, os santos impelem-nos a opções: ou elevar-nos na direção das alturas da espiritualidade ou abaixar-nos ao nível do puramente insensível e frio da materialidade. Para fazermos escolha sensata, hoje, convido a todos que nos matriculemos na Escola de São Bento para a aprender dele a rejeitar o poder de morte sobre o mundo e cultivar aquele sentido de vida em plenitude, encanto de uma humanidade chamada por Deus a ser continuadora da sua obra da Criação, como nos referem logo as primeiras páginas da Bíblia. Era para aí que apontava o Papa Bento XVI quando referia a urgência de as energias usadas para o mal se transformarem em força do bem, num grande projeto espiritual e humanístico. O que equivale, na prática, ao relançamento do ideal do Reino de Deus e edificação de uma «civilização do amor», para usar a expressão de S. Paulo VI. Para isto, acentuaria três âmbitos indispensáveis que designarei por três necessidades.
1. Necessidade de espiritualidade. Sim, precisamos urgentemente de quem saiba olhar para Deus e aceite que Este o fixe com o seu olhar misericordioso. Quem não desvie o seu olhar do olhar de Deus. Dizemos que o nosso mundo tem deficit de fé. Esse materialismo não se combate por meios emocionais ou psicológicos, mas pelo exemplo de quem tem coragem de O olhar de frente, pois nesse olhar cativante ilumina-se a inteligência e a vontade e abre-se o sacrário do coração. São essas pessoas que, iluminadas pelo olhar de Deus, iluminam a cidade dos homens, porque refletoras da Sua luz. Por isso, só com pessoas focadas em Deus, Deus pode retornar e desofuscar a cidade dos homens.
Sabemos que São Bento viveu num tempo muito semelhante ao nosso: decadência da civilização romana, materialismo, violência gratuita, fragmentação social com as invasões dos bárbaros, fracionamento da dimensão político-administrativa, queda do mínimo de coesão imposta pela lei, etc. Ao voltar o seu olhar para Deus, São Bento aprendeu a viver uma existência distinta. E muitos quiseram viver como ele. Criou-se, assim, uma nova forma de ver o mundo, uma nova constelação de valores, uma nova cultura que gerou uma nova Europa. Por isso, ele é o “Pai da Europa”, como sabemos. E assim se cumprem as palavras da primeira Leitura: “Meu filho, se deres ouvidos à sabedoria e inclinares o coração para a verdade, […] então compreenderás a justiça e o direito, a retidão e todos os caminhos da felicidade”.
2. Necessidade de verdadeira fraternidade. Temos, também, necessidade de pessoas que ousem olhar os outros nos seus próprios olhos. Que vejam a diversidade do mundo e a integrem em ordem a uma unidade de respeito pela particularidade de cada um. Bento de Núrcia não lutou contra as diferenças, mas coordenou o que era próprio de cada um em função do bem geral. Os mosteiros beneditinos são disso expressão: neles verifica-se uma forte organização social, resultante do contributivo de cada monje.
Por aqui passa a tal «energia moral do mundo» em ordem a um projeto de unidade, no género daquela bela e santa intuição dos chamados «pais da Europa» do pós-guerra, alguns deles, em processo de beatificação. Não seguir por esta via é a desagregação social, hoje uma ameaça preocupante. Mas Bento seguiu a trajetória exemplificada na segunda Leitura: a comunidade crente primitiva estava animada de uma força indestrutível e de uma unidade a toda a prova porque assente na ligação que a unia à ressurreição do Senhor. E daqui é que se geravam novos vínculos sociais. Por isso, chega ao extremo da venda de bens pessoais e familiares para os colocar ao serviço de todos. E se, até àquele momento, não passava de «um grupinho anónimo que seguiam as ideias de um morto», acabaria por se tornar testemunha, em todo o universo, de que Ele, afinal, vive, transforma vidas e está connosco até ao fim dos tempos como cimento de coesão.
3. Necessidade de líderes. Aqui, incluo as vocações. O desejo de autoconservação –seja na necessidade psicológica de sobressair ou de exercer poder, seja na sexualidade desordenada e de, com ela, compensar a necessidade de amar e ser amado- se levado a estes extremos, afasta de Deus e distancia dos outros. Nem podia ser de outra fora, pois, nesses casos, a pessoa olha para si e não cruza o seu olhar com quem existe do outro lado: Deus e os outros. Importa, pois, a ousadia de nos afirmarmos por valores que não sejam os rotineiros. Por isso, é lógica a pergunta do Evangelho: “Nós deixamos tudo e seguimos-te. Que recompensa teremos?”. E é igualmente lógica a resposta: “No mundo renovado –isto é, no mundo novo para o qual eles iriam contribuir de forma decisiva- recebereis cem vezes mais e compreendereis a novidade da justiça e do direito, da retidão e da felicidade” desse Reino.
Ora, como os Apóstolos e tantas outras pessoas, estes líderes são os que apostam tudo no bem-comum, buscando o caminho da realização nas vias que Deus coloca à sua frente. Podem ser as vias de um santo e casto matrimónio, gerador de novas vidas que serão cuidadas física e espiritualmente para que a fé permaneça e acompanhe as novas gerações, como podem ser as vias «apostólicas» de uma especial consagração no sacerdócio diocesano, na variedade e riqueza da vida religiosa, nas missões e noutras formas de apostolado no mundo. E segundo este prisma, ser crente é o mesmo que interrogar-se sobre a vocação, sobre as vias abertas por Deus para que cada um atinga a plenitude da meta.
Irmãs e Irmãos, quase no final da sua célebre Regra (Capítulo 72), São Bento referia o “bom zelo que os monges devem ter”. E aparece esta afirmação: “Assim como há um zelo mau, de amargura, que separa de Deus e conduz ao inferno, assim também há o zelo bom, que separa dos vícios e conduz a Deus e à vida eterna. […] Nada absolutamente anteponham a Cristo”. Aprendamos com ele e façamos como ele.
+ Manuel Linda
11 de julho de 2024