Um Papa que cativou pela simplicidade evangélica
Homilia na Missa Exequial pelo Papa Francisco
Nesta semana, o nosso mundo tão plural e de sensibilidades distintas, uniu-se por causa de um nome: Francisco. É verdade que, já quando o Papa estava vivo, grande parte da humanidade olhava para ele como centro e irradiação de valores a que muito se aspira, mesmo que, depois, a falta de determinação e a cedência aos aspetos mais instintivos não levem a edifica-los e a viver neles. Mas agora, com aquele choque que sempre nos causa a morte de um amigo e admirado, parece que esse sentimento veio mais ao de cima e (quase) todos o recordam como o fermentador de uma sociedade e de uma história que podem e devem ser melhoradas para bem da humanidade.
Trata-se, de facto, de um dado notável: pela sua maneira de viver e de se relacionar, o homem débil e Sumo Pontífice de uma Igreja frágil conquistou a benevolência de muitos. Nele se cumpriu o paradoxo que São Paulo dizia de si mesmo: “É na minha fraqueza que se revela o poder de Cristo. Pois quando me sinto fraco, então é que sou forte” (2Cor 12, 9-10). É que o Papa, tal como Francisco de Assis, de quem usou o nome, procurou viver a simplicidade do Evangelho nas palavras e nos gestos, na mente e no coração. E o Evangelho autêntico cativa. E possui uma extraordinária proposta de unidade na direção de uma esperança, de uma novidade, de uma melhoria: precisamente a que o mesmo Evangelho designa por Reino de Deus.
Muitos recordarão o Papa Francisco pela sua maneira de estar junto das grandes fragilidades deste tempo: dos migrantes e refugiados que fazem do Mediterrâneo um cemitério de vivos; dos velhinhos votados ao abandono e de quem a sociedade despreza o saber e experiência; dos jovens, mormente dos que não podem ou não sabem sonhar; do papel da mulher na Igreja e na sociedade, infelizmente ainda secundarizada pela cultura e hábitos adquiridos; das minorias, mesmo no campo da sexualidade, tantas vezes desprezadas ou até perseguidas; da paz e consequente antibelicismo; do desenvolvimento integral e harmonioso; de um ecumenismo e diálogo inter-religioso respeitadores e fraternos; dos agente de uma Igreja em contínua purificação, como já pedia o Concílio Vaticano II; enfim, na simplicidade de vida e nas atitudes de profundo respeito perante a pessoa com quem estivesse.
Sim, tudo isto é verdade. Mas tudo isto lhe provinha e lhe nascia do grande alicerce que é o Concílio Vaticano II, tal como refere o prólogo desse magna Constituição sobre a Igreja no mundo contemporâneo: “As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo; e não há realidade alguma verdadeiramente humana que não encontre eco no seu coração” (GS 1). Sim, para Francisco, não houve realidade alguma verdadeiramente humana que não encontrasse eco no seu coração. Poder-se-ia dizer que, quer ao nível das atitudes voltadas para fora, quer na reforma da Igreja, ele encarnou o espírito e a letra do Concílio e mostrou como, ainda hoje, não temos maior novidade sensata que não seja a doutrina conciliar, esse sopro do Espírito com o qual Deus quis retirar algum pó acumulado na face da Igreja para que esta possa brilhar na sua beleza luminosa, tal como o Fundador a sonhou e o Evangelho nos transmitiu.
Este é, portanto, o grande legado deste Papa extraordinário. Com ele, a Igreja será cada vez mais conciliar, isto é, mais evangélica. E na medida em que assim o for, o mundo encontrará nela um agente e um modelo de união fraterna, respeitadora das diferenças e força empenhada na conjugação do imenso saber disponível com a generosidade de um coração misericordioso ao serviço de todo o mundo, especialmente daqueles que sentem dificuldades de lhe acompanhar o ritmo, seja pelas suas fragilidades pessoais e grupais, seja pelas condições que outros lhe impõem ou até pela falta de ajuda a um desenvolvimento verdadeiramente integral. Neste dia do 25 de abril que, para nós, portugueses, nos diz tanto, aqui está também um repto e uma força impulsionadora, na liberdade e na convivência democrática. Para que nunca se esqueça o timbre de humanismo que dá sentido ao desenvolvimento.
O Evangelho de hoje fala-nos de uma refeição que o Cristo ressuscitado preparou para os que andaram na faina e não pescaram nada. Também hoje este mesmo Senhor quer sentar as mulheres e os homens do nosso mundo à volta da mesma mesa da união, da paz e da partilha do pão. Por outro lado, a Igreja celebra hoje a festa de São Marcos, o evangelista que nos apresenta Jesus e a comunidade apostólica como eterno modelo da Igreja, quer pela absoluta centralidade de Cristo, quer pela união entre os que a Ele aderiram pela fé e plena confiança. Foi isto o que o Papa Francisco tão bem soube encarnar enquanto “presidente universal na caridade” da Igreja. Eis a mais forte razão da sua grandeza como homem e como cristão.
Diz a Sagrada Escritura que “o justo deixará memória eterna” (Sl 112, 6). Precisamente por isso, não esqueceremos o Papa Francisco. Rezaremos por ele. Mas também lhe copiaremos os exemplos. E rezaremos ainda para que o Espírito de Deus nos conceda, brevemente, um novo Papa, simples para ser aceite pelo mundo, e de total fidelidade evangélica e conciliar, para servir a Igreja na sua contínua purificação e dar-lhe força para continuar a ser fermento de uma nova humanidade.
+ Manuel Linda 25 de abril de 2025