Nota Episcopal
Para uma quaresma penitencial
1. Ver a realidade
A recente publicação do relatório sobre o abuso sexual no seio da Igreja Católica veio demonstrar uma tristíssima realidade: a de que alguns padres e leigos pastoralmente empenhados cometeram crimes repugnantes, causaram imenso sofrimento às vítimas e, com o seu pecado, mancharam a face da Igreja e desacreditaram-na perante algumas parcelas da sociedade.
Infelizmente, não é este o único mal que pode ser imputado aos crentes. Como parte da sociedade civil mais vasta, muitos outros batizados terão contribuído para o chamado «pecado estrutural» e consequente abaixamento do tónus moral geral: cedência ao ódio e à violência, consentimento das injustiças e da corrupção, concordância com diversas tonalidades de xenofobia e de racismo, exploração sexual de vítimas de redes internacionais, imposição de trabalho semiescravo, violência e agressividade familiar, abandono dos mais velhos e despreocupação com as carências dos vizinhos, azedume e maledicência, alcoolismo e toxicodependências, etc., etc.
Há cristãos que vivem uma enorme doação a Deus e ao próximo. Mas também nos damos conta de que, com facilidade, arranjamos desculpa para não cumprirmos os nossos deveres religiosos, para não participarmos na vida da Igreja nem cultivarmos a fé, para não rezar nem seguir as vias da espiritualidade, para não evangelizarmos os mais próximos nem falar de Deus aos filhos e netos, para não «dar a cara» pela religião nem a promover, enfim, na prática, para não nos distinguirmos dos agnósticos e dos ateus. Na relação com o próximo, por vezes, fechamo-nos no nosso egoísmo e tornamo-nos insolidários, pouco ou nada colaborantes, insensíveis à dor alheia, incapazes de generosidade e desprezadores de outros critérios de vida que não sejam o ter e o gozar.
2. Julgar com critérios evangélicos
Toda a mensagem bíblica anda à volta do “buscar a Deus” (Am 5, 4) para, na comunhão com Ele, Lhe copiarmos as atitudes e maneira de proceder. Mas como o comportamento habitual se afasta deste modelo, a Sagrada Escritura usa muito a noção de penitência ou conversão, tidas como atitudes de mudança de rumo, de desvio do que é mau para seguir o caminho da bondade. Fazem referência a um reequacionamento da existência, uma nova reorientação de toda a vida, mediante uma reviravolta que se produz a nível interior.
Como tal, o Senhor Jesus começa a sua pregação com a frase incisiva: “Convertei-vos, que o reino de Deus está próximo” (Mt 4, 17). E elogia a atitude de quem entra em si, reconhece o mal, muda de vida e começa a praticar o bem, tal como o publicano: “Meu Deus, tende misericórdia de mim que sou pecador” (Lc 18, 13). De facto, o Evangelho apresenta-nos esta afirmação que parece desconcertante: “Haverá mais alegria nos céus por um só pecador que se converta que por noventa e nove justos que não têm necessidade de penitência” (Lc 15, 10). Por causa disso, o Senhor aproximava-se deles, muito embora soubesse que era criticado por conviver e comer com pecadores (cf Mt 9, 10-13). Fazia-o para despertar a conversão.
Como sabemos, as primeiras comunidades cristãs levaram isto tão a sério que se sentiam “os salvos desta geração perversa” (At 1, 40). E Lucas, ao descrever-nos a emblemática comunidade cristã de Jerusalém, refere-nos onde radica a diferença: num estilo de vida mais comunitário, na assiduidade à oração e à fração do pão ou Missa e na preocupação com o condividir os bens materiais (casas e campos), concretamente com os órfãos e viúvas pobres. Era toda a comunidade que o fazia, pois, de facto, “tinham um só coração e uma só alma” (At 4, 32).
3. Agir cristãmente
Nesta linha, lanço o desafio a todos os cristãos da Diocese do Porto: viver esta quaresma de 2023 em perspetiva penitencial ou de conversão. Na relação com Deus, convido ao regresso à prática religiosa, se for o caso, ou a uma dimensão sempre mais interior e sentida da vida espiritual. Sem desprezar a confissão e as tradicionais práticas da abstinência e do jejum. Na relação com o próximo, pautemos o nosso comportamento por atitudes de justiça, de solidariedade comprometida, de disponibilidade de tempo para os outros, de paciência e compreensão, de promoção social e desenvolvimento humano. E também pela partilha fraterna de bens.
No referente a este aspeto, escutados todos os órgãos de corresponsabilidade diocesanos, decidiu-se que o produto da renúncia quaresmal e do contributo penitencial sejam canalizadas para as seguintes finalidades: para o Centro de Promoção Social “Renascer Pra Esperança”, de Chirrundzo (Província de Gaza, Moçambique), que acolhe 107 crianças com idades compreendidas entre os 2 e os 16 anos, sinalizadas à base de critérios de pobreza extrema, abandono, orfandade ou doença; para a associação laical “Muchachos solidários”, de Quito (capital do Equador) que alimenta e fornece material escolar a cerca de 200 crianças filhas de famílias muito pobres que vivem do comércio informal nas ruas, tais como engraxadores de sapatos, negócio de fruta e vegetais em pequenas bancas, venda de frutos secos e doces nos semáforos, etc.; para um Fundo de Apoio a Jovens de países de terceiro mundo, mormente das Igrejas irmãs de África que falam o português, para os dias que passarão entre nós, na preparação próxima para a Jornada Mundial da Juventude 2023; e para o Fundo de Solidariedade da Diocese do Porto, pois a experiência indica-nos que, ao longo do ano, chegam-nos vários pedidos lancinantes de ajuda (do estrangeiro), quase sempre motivados por cataclismos ou desastres naturais.
Que Deus deponha no nosso interior o desejo de penitência e conversão em ordem a uma maior familiaridade com Ele mesmo e com os nossos irmãos.
Santa e feliz quaresma! São os votos do irmão,
+ Manuel, Bispo do Porto
Foto: grant-whitty