A Cruz, farol de misericórdia
Há uma passagem no Evangelho, proclamada no passado Domingo, que pode ser tomada como prólogo ou indicador de sentido deste relato da Paixão. Contava-se nela que uns estrangeiros queriam ver Jesus, certamente cheios de curiosidade por causa de uma fama que tinha ultrapassado fronteiras. Dirigiram-se ao discípulo Filipe que, juntamente com André, os conduziu ao Mestre.
Certamente, felicitaram o Rabi pelo seu enorme prestígio. Porém, o que o Senhor lhes referiu foi o exemplo do grão de trigo lançado à terra: só morrendo é que dá muito fruto, o fruto que alimenta a vida dos demais. Anunciou-lhes, portanto, não só o acontecimento do Calvário, mas também a sua motivação profunda: a Paixão acontece para a vida do mundo. Aliás, como Ele já tinha anunciado: “Eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância” (Jo 10, 10).
Eis o grande paradoxo cristão: o Senhor da glória submete-se à mais degradante e dolorosa humilhação para que a vida de toda a humanidade seja alimentada com o pão do trigo cuja semente a terra fez morrer. O que para nós é chocante: desejaríamos desconhecer a realidade da dor, do sofrimento e da morte. Desejaríamos um Cristo triunfante, glorioso, que se impusesse pelo seu esplendor. Um Cristo tão elevado e tão fulgurante que até se tornasse irresistível aos indiferentes e se impusesse aos opositores da fé.
Mas não é assim que Jesus se faz ver. Como farol no cimo da torre, é no alto da cruz que atrai os olhares da multidão: dos poucos que, no Calvário, estavam do seu lado e dos muitos que julgavam estar em oposição a Ele. Atrai os olhares porque se solidariza com a dor de todos. Perante a cruz, como as mulheres e o discípulo João, alguns sofrem e demonstram esse sofrimento nas lágrimas. Mas os outros, os que se riem e provocam o Crucificado, também eles conhecem bem o sofrimento, naquele ou em qualquer outro momento das suas vidas.
Jesus, compadecido, solidariza-se com esse sofrimento, a ponto de lhes perdoar, de pedir ao Pai desculpas por eles “que não sabem o que fazem” (Lc 23, 34) e de lhes obter a salvação, mesmo que o ignorem. Porquê? Porque o Senhor ama com amor de doação, generoso, sem esperar nada em troca. E a cruz, precisamente por causa da dureza do sofrimento, tornou-se o símbolo dessa nova atitude que nos choca pela imensa bondade e nos cativa pela infinita amabilidade. Colocada bem no alto do monte Calvário, a cruz é farol para uma humanidade que precisa de encontrar um sentido para a vida: é farol que guia o itinerário, atrai o olhar e ilumina a rota.
Constitua esta Semana Santa mais uma ocasião para descobrir a vida que nasce do aniquilamento do Salvador. Porque a cruz é o único farol donde saem feixes de luz que são amor misericordioso.
Manuel Linda, Bispo do Porto 28 de Março de 2021