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COMPREENDO E ACEITO

 

Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos

Justiça, a virtude típica do “Homem novo”

 

Irmãs e Irmãos na mesma fé em Jesus Cristo, o revelador do Amor do Pai e único Salvador na força do Espírito,

humanamente, é belo quando os nossos corações nos pedem proximidade, não obstante as nossas histórias e as nossas tradições, e colocam nos nossos lábios as mesmas palavras de louvor e ação de graças; espiritualmente, é indicador de que é mais o que possuímos em comum do que aquilo que nos separa. Estamos aqui para exprimir esta dupla vertente. Quero mostrar a minha alegria por este encontro fraterno, saudar a todos, demonstrar o meu apreço pelos meus irmãos hierarcas e, de uma forma especial, agradecer ao meu estimado amigo, senhor Dom Sifredo, o acolher-nos neste seu templo.

Para além destes critérios estruturantes, nesta Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos, somos também chamados a rezar e a sintonizar a nossa vida com o apelo bíblico de Isaías, escolhido por irmãos nossos do Conselho de Igrejas de Minnesota: “Aprendei a fazer o bem, procurai a justiça” (Is 1, 7). A beleza da sua reflexão é tal que dispensava mais palavras de complemento. Não obstante, para exprimir a minha profissão de fé nesta via de unidade das nossas Igrejas, qual motor de unidade do próprio mundo, deixo a minha reflexão despretensiosa. E cinjo-me exclusivamente à segunda admoestação do Profeta –“Procurai a justiça”- já que me parece ter muito a dizer aos cristãos como “alma do mundo”, segundo a expressão dessa joia da literatura cristã primitiva que é a Carta a Diogneto.

Parece que, nos primórdios da história cultural, o tema da justiça não apaixonou os pensadores. Era vista como mera correspondência a algo pré-estabelecido, fixo, ao qual importava submeter-se, como a qualquer coisa de natural: o escravo acharia «justo» servir o seu senhor e os subjugados pela guerra aceitariam a pilhagem, a destruição total e as condições impostas como «o que tinha de ser». Por isso, não se nota qualquer preocupação intelectual de reflexão sobre a justiça, ao contrário, por exemplo, dos temas da coragem e da astúcia. Vejam-se, por exemplo, os poemas homéricos.

Porém, o desenvolvimento da consciência da humanidade acabou por dar-se conta da sua real importância. Aristóteles viria a chamar-lhe a “virtude por excelência” ou “soberana de todas as outras”. O Cristianismo, na sequência da perspetiva bíblica judaica, demonstrou-se muito sensível à justiça. A Carta aos Romanos, por exemplo, constrói o célebre capítulo 3 à base da justiça de Deus e da maldade humana para afirmar solenemente que não há outra forma de aceder à justiça que não seja pela incorporação ao Cristo pascal: “Como está escrito, não há um justo, nem um sequer. Não há ninguém que busque a Deus. [Mas nós fomos] justificados gratuitamente pela sua graça, pela redenção que há em Cristo Jesus” (Rm 3, 10-11.24). Nesta linha, Tomás de Aquino desenvolveria o tema da justiça como o valor central, identificado com o próprio Deus, do qual derivam todas as outras virtudes (a prudência, a fortaleza, a sabedoria, a piedade…), enquanto ordenação ao bem comum. Chama-lhe mesmo a “generalis virtus”, a virtude geral, detalhada e tornada concreta em cada uma das outras.

Na perspetiva da nossa fé, então, a justiça é a participação no ser de Deus. Exprime-se na retidão integral e na noção de “homem novo, criado para ser semelhante a Deus em justiça e em santidade”, como diz a Carta aos Efésios (Ef 4, 24). Por isso, o Senhor pode proclamar: “Bem-aventurados aqueles que têm fome e sede de justiça porque serão saciados” (Mt 5, 6). Porque encontram a plenitude no ser de Deus, o Justo, e seu procedimento. A justiça funda-se, portanto, na fidelidade ao plano da graça e na aceitação da ação transformante do Pai que é fiel e assume a pobreza da pessoa para a fazer participante do seu ser de sabedoria, bondade e misericórdia, pois Ele é amor (cf 1 Jo. 4,8).

Nesta perspetiva, a justiça é bem mais atributo de um “coração de carne” (Ez 36, 26), sensível e crente, do que o cumprimento de uma lei de qualquer género, sempre «fixista» e meramente resultante de um “contrato social” (Rousseau) que a perspetiva ideológica dominante formalizou num determinado momento, mas que até pode ser fonte de novas injustiças. É um dom que gera uma outra condição antropológica, originada e sustentada pelo próprio Deus, na força do seu Espírito: o tal “homem novo”. Por isso, a justiça divina é salvífica: do próprio homem, da sociedade e até da natureza, com quem ele se tem de relacionar.

Ora, o Iluminismo do século XVIII cortou com esta visão teocêntrica e antropológica ao reelaborar a noção de justiça como algo meramente regulador das relações sociais e ao separá-la totalmente da “ordo amoris”, de que falava Agostinho de Hipona. E deixou de ser fruto de um coração alimentado pela palpitação de Deus, de um coração que bate ao ritmo do de Deus, para passar a um banal reconhecimento dos simples direitos dos indivíduos, um mero jogo de forças, mais ou menos ideologizadas e sempre frias, que se entrecruzam entre direitos e deveres de cada um.

Caras amigas e caros amigos, compete a cada um de nós, discípulos do mesmo Senhor, re-situar a justiça na aceitação da graça salvífica e na consequente metanoia do coração, até fazer dela uma nova condição antropológica de quem, em Cristo se sente mulher nova e homem novo no amor que transforma todas as relações: com Deus, de quem nos sentimos filhos; com os outros, em ordem a uma efetiva fraternidade universal; com a natureza, sobre quem exercemos um senhorio de proteção e de cuidado.

Há que situar a justiça no coração compadecido das pessoas (no seu interior) e não somente nas normas (o exterior), tantas vezes fruto da imposição dos mais fortes, frequentemente o resultado de perspetivas ideológicas e, não raro, geradoras de maior injustiça e inimigas de um efetivo bem comum local, nacional e internacional. Fundamentalmente, há que tomar a justiça não como mecanismo condenatório dos outros, mesmo dos pecadores e criminosos, mas como tentativa de aproximação e de salvação no amor e na misericórdia. A justiça verifica-se quando nos libertamos e ajudamos a libertar das condições degradantes que impomos uns aos outros ou a nós próprios, sejam de ordem económica, social, legal, cultural, familiar, religiosa e de todo o género. Justiça é a aceitação do Deus livre na nossa vida e a atuação segundo os seus critérios salvíficos.

A justiça gera sempre espaços demarcados por novos vínculos. Correspondamos ao Deus justo criando áreas de relação e comunhão entre nós e entre as nossas Igrejas e de todos com o mesmo Deus que adoramos e pregamos. Assim, permitimos que o Espírito crie uma nova família humana e uma sociedade que se regerá pelos critérios decisivos da caridade, perdão e misericórdia. É esta justiça que libertará a nós mesmos e ao mundo do pecado do egoísmo, da rapina e da violência. Mas é também o grande testemunho que podemos oferecer à humanidade e aos que não possuem a nossa fé: que as nossas Igrejas constituem o efetivo lugar e sinal da presença do Deus justo na história. O mundo só se libertará das injustiças quando pressentir que estamos ao lado das vítimas e fazemos percurso com os oprimidos precisamente porque, mergulhados em Cristo pelo Batismo, é no seu ser e na sua força que ousamos esperar um mundo mais justo e relações humanas mais gratificantes.

Ele abençoe os nossos bons propósitos.

+ Manuel Linda, Bispo