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Homilia na Solenidade de Santa Maria, Mãe de Deus - 2024
   

 

A poesia da paz

Homilia na Solenidade de Santa Maria, Mãe de Deus, de 2024

 

Com esta celebração, concluímos a oitava do Natal. Se, há oito dias, tudo se concentrava no Menino, hoje o pensamento dirige-se para a sua Mãe. Acontece um pouco como na nossa família: quando nasce um bebé, aproximamo-nos do bercinho, com muita alegria e curiosidade, para contemplar de perto a beleza da vida nascente e para lhe fazer um afago e pegar na mãozinha. Logo depois, deixamo-lo em paz, já que precisa de dormir, e dirigimo-nos à mãe para a felicitar e falarmos do filho: se tem ou não saúde, se se alimenta, se dorme bem, etc. É o que fazemos neste primeiro dia do ano civil. O espírito da Liturgia anda à volta da Virgem que nós, hoje, designamos por Santa Maria, Mãe de Deus. Mas sem nos esquecermos de Jesus.

Ora, do muito que se pode dizer do Filho de Maria, avulta a sua ligação com a paz. Isaías chama-Lhe “Príncipe da paz” (Is 9, 6); S. Paulo garante que “Ele é a nossa paz” (Ef 2, 14) e o Céu quer associá-l’O à paz quando faz os anjos cantar na noite de Natal: “Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens por ele amados” (Lc 2, 14). A partir deste fundamento, a Igreja instituiu o Dia Mundial da Paz, jornada de consciencialização que celebramos há 57 anos. Este ano, o âmbito que o Papa Francisco propõe para refletirmos é o da “Inteligência Artificial e a Paz”.

Porquê este tema que parece tão abstrato e longínquo das nossas necessidades diárias? Porque neste tempo de «aceleração da história», o que hoje é apenas pressentido, amanha será realidade, facto reconfortante e construtivo ou momento desumanizador e destrutivo. Nesta linha se insere a preocupação do Papa: a tecnologia tanto pode ser um caminho para a paz, uma potenciadora da organização da sociedade e fator de aumento da liberdade e comunhão fraterna, como instrumento altamente potenciador de mais morte e destruição. De facto, com as novas tecnologias consegue-se fazer guerra à distância. Neste caso, ao afastar o soldado das suas vítimas, faz com que ele não se emocione, já que não ouve o choro das crianças, os gritos dos pais, as lágrimas dos velhos, as sirenes das ambulâncias. Como tal, não se impressiona com a morte e destruição que gera, não lhe nascem sentimentos de compaixão ou qualquer remorso. É o que refere o Papa: “A possibilidade de efetuar operações militares através de sistemas de controlo remoto, levou a uma perceção menor da devastação causada e da responsabilidade da sua utilização, contribuindo para uma abordagem ainda mais fria e distante da imensa tragédia da guerra”.

Se uma reflexão sobre isto se impõe sempre, torna-se mais premente no nosso tempo. Pense-se nisto: há anos, calculava-se que existiriam no mundo 60.000 bombas nucleares com um poder destrutivo equivalente a quatro toneladas de explosivos convencionais por cada habitante do planeta. Sim, por cima da nossa cabeça e da de cada um dos vossos filhos e netinhos, caros cristãos, por cima da cabeça de todos e cada uma das pessoas deste nosso planeta, paira a ameaça de 4.000 kg de destruição e morte. Isso com os dados de há anos. Mas hoje são muito mais dramáticos.

Evidentemente, a paz não se cria por decreto: constrói-se no desarmamento da nossa consciência, base da edificação de um mundo mais justo. A paz, sendo a concentração de todos os bens, antes de se tornar realidade externa, é disposição interior. É aquela atitude de fundo que molda a personalidade de todos e cada um de nós: é dom de Deus, mas também trabalho fatigoso pessoal, conquista que supõe forte investimento no perdão, altruísmo, generosidade, justiça social e na fraternidade. Por isso é virtude, isto é, algo a construir no esforço e no empenho. Nesta linha, compreende-se a bela frase de Primo Mazzolari: “O cristão é um homem de paz, mas não um homem em paz. Fazer a paz é a sua vocação”.

A paz é respeito pelo direito, a nível nacional e internacional, mas não menos por aquela moralidade que baliza o bem e o mal, mesmo que a descoberto da lei. E nisto muito há que mudar. Dou um exemplo: infelizmente, entre nós, existe exploração de migrantes, particularmente dos sem-papéis. Há caves arrendadas a preço de ouro e em condições indignas; há retenção de parte do salário com o pretexto disto e daquilo; há horários de trabalho cruéis; etc. No fundo, há quem viva do sangue que suga a estrangeiros. Ignoro quantos o fazem. Não serão muitos. Mas que os há, há.

Irmãs e irmãos, o Evangelho de hoje diz-nos que é junto de Maria, a Santa Mãe de Deus, como a definiu o Concílio de Éfeso, que encontramos o Menino anunciado pelos profetas, tal como o descobriram os pastores. Ora, este Menino é a paz, é o instaurador de uma nova relação afável com Deus Pai e de uma fraternidade universal à face da terra. Temos aí um novo calendário: 366 páginas em branco. Que vamos escrever nelas? Gestos de paz que tudo recria ou da rotina que leva à destruição?

O Menino e sua Mãe nos ajudem a escrever na história da nossa vida aquela belíssima poesia que concentra em si todas as coisas belas: a poesia da paz.

 

 

 

 

 

Manuel Linda, Bispo do Porto 01 de Janeiro de 2024