A «coesão» com Deus e com os irmãos
Há anos, um grupo de amigos pediu-me a bênção das motos, qual instrumento de trabalho e/ou de diversão, não isento de perigos. Nesse pedido, já estava presente uma referência religiosa, um implícito ato de adoração e de confiança nesse Ser Absoluto, a quem designamos por Deus. Se não, que razão haveria para invocar o seu Nome e a sua proteção? Mais tarde, por pedido expressão da organização, juntou-se a celebração da Missa. E o sentido de espiritualidade e religiosidade aumentou muito mais. É que ao dirigimo-nos a um Deus amigo dos homens, que por eles deu a própria vida, como celebramos na Páscoa, não só estabelecemos especial relação com Ele, base de toda a religião, como assumimos o mais fundamental do cristianismo: que Deus gosta de nos ver juntos, como um povo que lhe pertence, e que neste povo, constituído por todos os batizados, também entram os nossos irmãos defuntos, pois a única coisa que nos separa deles é que eles já ultrapassaram as leis básicas do espaço e do tempo e, por isso, vivem a eternidade em plenitude. Mas a sua pertença a este povo é igual. O que, em linguagem que vos é habitual, poder-se-ia dizer que o «espírito de corpo» que carateriza a vossa Instituição abrange também os vossos antigos colegas e camaradas que já não estão entre os vivos. Fazemos memória deles.
A partir destes dados, duas ideias muito simples. Pediram a bênção para que no uso das motos reine a alegria e jamais as coisas tristes, tal como os acidentes. Evidentemente, a segurança na estrada tem de começar por cada um dos condutores. Mas todos sabemos que há situações em que parece que se não fosse qualquer coisa de fora de nós, poderíamos não nos ter saído bem. Esse «algo mais» é a graça divina, essa proteção de Deus, essa força do seu bem. Faz-nos falta um certo sentido de confiança n’Ele. Aliás, a vida é confiança. Confia o subalterno nos seus chefes, o filho no pai, o aluno no seu professor, o cidadão nas suas Forças se Segurança. Sem esta confiança, a vida seria insuportável. Confiemos, portanto, uns nos outros. Mas confiemos também em Deus: Ele entra também nesta grande organização da vida. Desprezá-l’O seria uma grande perda para cada um, individualmente, e a sociedade ficaria privada de uma das estruturas mais sólidas da sua coesão social.
Na minha mente, associo muito o uso das motos e uma ideia de liberdade. Creio que os clubes motards se constituem fundamentalmente com este pressuposto. E a liberdade é sagrada. Para a Igreja, é mesmo a base a partir da qual se pode estabelecer a bondade ou a maldade dos atos humanos. Sem ela, não ultrapassaríamos, em dignidade, os animais. Além disso, e graças a Deus, a sociedade civil também a valoriza imensamente. Ainda há poucos dias, no 25 de Abril, celebrávamos com imenso júbilo a liberdade reconquistada e instituída.
Os valores, porém, como o da liberdade e de tudo o que é precioso, correm riscos. Precisamos de os promover e defender. Há ideias falsas de liberdade, pois não falta quem pense que a liberdade é dar asas plenamente ao que apetece num determinado momento, ainda que isso seja algo de aberrante ou vá contra os outros.
A verdadeira liberdade, porém, é uma libertação. É o retirar do interior de cada um de nós aquilo que não nos eleva, mas nos abaixa ao nível dos animais: o sentido da posse como sofreguidão, a ira que só gera guerras, a inveja que mata, a calúnia que fere, etc. A liberdade verdadeira começa a este nível. Mas, não pode ficar aí: liberdade interior exige condições exteriores onde se possa desenvolver. Uma supõe a outra irrecusavelmente. E uma sociedade só será verdadeiramente livre quando estas duas dimensões estiverem harmonizadas.
Para esta segunda tarefa, o vosso contributo é insubstituível. No exercício de um policiamento de proximidade, numa relação simpática com os cidadãos, na aplicação da lei, mas sempre com sentido humanizador, vocês constituem a defesa e a garantia dessa liberdade. Tenham a certeza de que, como eu, grande parte da sociedade portuguesa lhes agradece este imenso contributo para o nosso bem maior. E se alguns passam a vida a criticá-los, é porque não são efetivamente amigos da liberdade. Para que o continuem a fazer com coragem e simpatia, espero que também a sociedade portuguesa lhes possa oferecer o que é mais indispensável: possibilidade de estabilidade para formarem família e criarem os filhos nos âmbitos a que estão mais ligados por afetividade ou história; condições de tempo para estarem com os vossos; reconhecimento social do vosso contributo para o bem comum; condições de trabalho e instalações condignas, etc.
Finalmente, uma palavrinha sobre os dois santos que a liturgia da Igreja hoje celebra. São dois Apóstolos de Jesus, dois idealistas, que deixaram tudo ao serviço da liberdade deles e do mundo: Filipe e Tiago. Para além de outros traços, distinguem-se por isto: pela sua imensa capacidade de abertura a Deus, aos outros e à cultura. Filipe pede a Jesus para lhe mostrar o Pai, porque era portador de uma profunda espiritualidade de abertura ao Superior. Mas ele já tinha intercedido, junto de Jesus, por uns estrangeiros, uns gregos. Homem, portanto, de abertura para cima, para Deus, e para o lado, para os irmãos. E Tiago é conhecido, fundamentalmente, por uma questão surgida no início do cristianismo: os novos membros deveriam ou não obedecer às normas religiosas judaicas, por exemplo, no campo da alimentação? Podiam ou não comer de tudo? A questão era séria, naquela altura. Com uma coragem extraordinária, Tiago encabeça a posição de abertura: não, os cristãos são livres a partir de dentro. Não é necessário cumprir essas regras. A fé é uma força de coesão com Deus e com os irmãos e não um conjunto de regras exteriores a cumprir.
Irmãs e irmãos, também eu lhes desejo que a liberdade que vivem e promovem na nossa sociedade arranque desta base de quem se sente interligado com Deus e com os irmãos. E que Ele vos abençoes, bem como a quantos lhes são queridos.
+ Manuel Linda 03 de maio de 2024