No sufrágio dos ministros ordenados falecidos
Navegantes entre o amor e a dor
O trecho do Evangelho que escolhi para esta celebração de sufrágio pelos Bispos, Sacerdotes e Diáconos da nossa Diocese do Porto não costuma ser lido em semelhante contexto. Não obstante, pode oferecer-nos uma base sólida para uma reflexão sobre a própria existência e para compreendermos a função que a Igreja espera de nós, cristãos em geral e ministros ordenados em particular.
Os evangelistas sinóticos são unânimes em referir que Jesus vinha cansado da missão de anunciar a verdade de Deus; que atravessava o mar de Tiberíades quando a tempestade se levantou; e que, mal chegado à outra margem, as circunstâncias como que O obrigaram a realizar intervenção social, libertando o possesso geraseno, curando a mulher que sofria de fluxo de sangue, ressuscitando a filha de Jairo, etc. Estes três momentos vincam bem o que é típico do mistério da salvação: anunciar o Reino de Deus, atravessar e ajudar a atravessar as tempestades da existência para que ninguém se afunde e inserir-se no concreto da sociedade e na vida sempre a melhorar.
Como nós, Jesus passa de margem a margem, parte em viagem. Somos todos viajantes, peregrinos nesta vida, que nunca permanece numa mesma margem, pois aceitemos ou não, a nossa meta é a travessia, o chegar à outra margem. Neste percurso, por vezes a fúria da tempestade faz-nos interrogar: onde está Deus que parece despreocupado com as aflições humanas e, Ele mesmo, afundar-Se com a humanidade que vai no barco? Mas, como alguém diz, a questão é outra: onde vai parar a humanidade se recusar a intervenção de Deus para que as vagas serenem e os ventos se transformem em suave brisa? Chegará à outra margem, sã e salva, uma humanidade que conte somente com as suas forças ou não anseie por outra margem?
Os ministros sagrados que hoje comemoramos são aqueles que, souberam fazer a travessia do mar da vida, umas vezes mais curta, outras vezes mais demorada. Também eles sofreram não uma, mas muitas tormentas, algumas das quais bem ameaçadoras, muito perigosas. Mas não foram ao fundo porque não se afastaram da companhia d’Àquele que é a segurança e a Salvação. Aquele que acalma as fúrias e predispõe o mar para a navegação. Atravessaram, pois, o remoinho da existência sem se desagarrarem do Senhor, a Quem amaram e de Quem falaram aos irmãos para que estes O amassem.
Mas, fundamentalmente, foram aqueles que não atravessaram o mar sozinhos e conduziram uma imensa multidão em direção à margem nova e definitiva, ao grande seio ou meta onde as pessoas são acolhidas e não mais sofrem os furações que afastam da rota e as vagas que tudo submergem. Sim, sofreram como o seu povo e por causa do seu povo. Todos eles. Não havendo possibilidade de referir cada um deles, pensemos nos bispos meus antecessores, a partir daqueles que eu conheci pessoalmente.
D. António Ferreira Gomes, um visionário do futuro, viu bem que a liberdade, a convivência social e a paz nunca se impõem, mas, para lá da fortíssima componente religiosa que contêm, se edificam nos dinamismos históricos. E que estes, naquele como no nosso tempo, passam pelos direitos humanos, democracia e contributo que cada sensibilidade e posicionamento possa dar para o bem comum. Por isso sofreu, por isso foi exilado, por isso se bateu arduamente depois do vinte e cinco de abril de 1974.
D. Júlio Tavares Rebimbas conheceu a oposição de quem não sabe olhar para as estrelas, mas se diverte a amassar o lodo do caminho. Foi um edificador. Edificador de estruturas para o serviço dos outros. Foi assim, como Pároco, em Anadia e Ílhavo, onde se destacou pelas obras de cariz social que criou. Foi assim em Lisboa, ao aceitar, com humildade, ser como que a coluna de apoio do muito jovem Patriarca, D. António Ribeiro, quando já se antevia que o Portugal autocrático daria lugar ao Portugal democrático, com todo esse titubear típico dos primeiros anos de vida. Foi assim em Viana, Diocese que criou e foi assim no Porto, com as muitas obras que aqui realizou.
D. Armindo Lopes Coelho serviu a Diocese do Porto como formador e Reitor do Seminário da Sé, a partir de 1959. Era o tempo do pré-Concílio, do Concílio e da receção do Concílio. Como sempre que há algo de novo, alguns fiéis começaram a temer as suas consequências e outros, de ânimo ligeiro, a extrapolar o Vaticano II para extremismos deploráveis. Manter o equilíbrio da barca da Igreja no lugar tão nevrálgico como é o Seminário, não lhe foi tarefa fácil. Mas cumpriu-a, com amor e com dor. Mais tarde, quando regressou ao Porto, veio encontrar muitas sensibilidades, nem todas aceitáveis ou defensáveis. Não obstante o sentido prático para resolver as questões, a sua inteligência e o seu bom humor, tudo isso pode não ser alheio à hemorragia cerebral que sofreu pouco antes do tempo da sua resignação. Pelo seu povo. Pela sua Diocese.
Depois do senhor D. Manuel Clemente, felizmente vivo, a Diocese do Porto foi servida por um autêntico «justo»: o senhor D. António Francisco dos Santos. Dotado de uma inexcedível memória, capaz de reconhecer as pessoas e de as tratar pelo seu nome, mesmo que vistas há muitos anos, distinguia-se por aquela candura e doçura que trouxe consigo do Montemuro. Sei bem que, após a natural observação de quem chegava, a Diocese se lhe rendeu e as pessoas que o conheciam o tratavam como se fora um familiar. Não obstante, não pisou somente tapetes de flores. Não faltou quem se aproveitasse desse seu «fraco», que era a simpatia, para lhe tentar impor critérios e situações que ele não podia aceitar. E aqui temos um bispo dilacerado entre a defesa da verdade e da Igreja e as imposições maldosas, vindas de fora. Como ele próprio, um dia, me confidenciou. Também a sua morte bem prematura, há sete anos, terá muito a ver com o equilíbrio destes pratos da balança: a verdade a defender e a doçura de trado devida a todos.
Já no seu tempo tão recuado, o «boca de ouro», S. João Crisóstomo escrevia a propósito do Evangelho proclamado e refletido: “Navegamos num mar grande e espaçoso: um mar cheio de monstros marinhos e piratas, cheio de rochas e de picos, um mar agitado por muitas ondas e tempestades. Neste mar muitos naufragam. Por isso, quando vires algum marinheiro ser atirado entre as ondas, prestes a ser submerso, pára o teu navio. Mesmo que estejas com pressa para outro lugar, preocupa-te com a segurança dele. Quem está prestes a afogar-se não pode permitir demora nem lentidão. Portanto, apressa-te, arrebata-o imediatamente das ondas, estejamos cheios de preocupação pelos nossos irmãos”. É esta a vocação dos ministros ordenados
Os bispos, sacerdotes e diáconos que agora sufragamos souberam navegar com Jesus por perto. Mas igualmente se esforçaram por aproximar o seu barco daqueles outros que corriam o risco do naufrágio. Mesmo com dor, mas sempre com amor. Agradecemos-lhes por isso. E pedimos a Deus seja o farol que, agora, lhes assegura a beleza do lugar que pisam.
+ Manuel Linda 11 de setembro de 2024